It's as if I have all the strength of a prayer, 

not to cry

In a prayer, 

killing the lord is expensive, but it's worth a lot. It is a medullar gesture in the arduous investigation utoward the full radical liberation of body, imagination, and spirit. It is a u that adds stash the incessant movements necessary to go through the marks, symptoms, effects, and consequences hauntingly germinated by the evil system of coloniality. For millennia, the colonial machine has constrained and trained individuals to watch over and protect everything that contributes to the crystallisation and increase of wealth, progress, and well-being of whiteness and its sovereignty. Dynamics that imply, require and cause drag massive exploitation and draining of all sources of energy and life on the planet. Simultaneously, it instructs and institutes ideas, norms and behaviors that neglect, rape, defame and alienate populations, hardening its diabolical racist structures and phallic gears, organizing the global space with the violence that guarantees the eternalization of such process. The soil that writes these words to you is not at peace, yet it handles, manoeuvres, and juggles the impossible with the intention of joy, rest and vital plenitude. It inherits the crumbling soil of a disfigured planet, converted into an abusive valley of dry bones, via religious means. But it finds in the ocean a song that exhales the firm aroma of a relieving memory: earth is not captive to humanity. Old women and children blow and ripple sound by whispering in their ear. They pray, without even closing their eyes; they pray laughing, they pray somberly. They pray to destroy curses propagated as if they were blessings. They pray for the life that is found at the torrential crossroads of the waters. The prayer is a capoeira movement, a kiss in the wind, a silent conversation of careful secret and wet mystery. Look, the performance will have been worthwhile, when the first words of the supplication are not “lord, my god, our father". The prayer will be a dive into entangled waters, which are breath and incomprehensible paths to the devourer. The struggle to be a source of life amidst the annihilation is what establishes profanation. In the midst of prayer, the embodiment prompts the invention of breathing organs beyond gills and lungs, ensures refuges where it is possible to live the improbable, and brings to the surface ways of existing far from the codes and lies promoted by the killer temper burst of the Abrahamic whiteness, impregnated in the atmosphere and spread under the configuration of a brutal plague, all over the globe. Performance is a sweet sour fruit, extremely juicy, an excuse to dream about centuries of health, pleasure, and freedom in a matter of instants. Fruits are originary, dark and transsexual artists abundantly funded to live and multiply life, performing the task of transmuting poisons and sewage dumped in the springs of all living life, outside and inside every breathing being. The work of art is the building of a lascivious church, the roar of a lioness with the body and face of a congregation, it is a clay vessel being moulded by the moist hands of the potter's life, about to pass through the oven. It is necessary to break with the perverse way of doing theology, to unlink the image and legacy of god in the likeness of the cisgender white man, to free the divine from a lordly status to which it was consolidated and therefore imprisoned—through the liturgical and onto-epistemological plan of domination and sovereignty defended by the Roman Catholic Apostolic order, a project in which the Eurocentric historiography of art played a major role. Art needs to take responsibility for repairing, founding and maintaining spaces, each time wider and deeper for people who are hungry, sick, ignored and read as disposable or useless. For the desperate and faithless, for those who have nowhere else to go, homeless people who have had their tents destroyed and ruined by colonial evil. Art needs to be a territory where the waters can flow without control, in a way that is contrary to the movement of asphyxiation, burial, and degradation of the river courses that has occurred in the large urban centres, in the name of modernity. I am known by many ways, but I have Catu as a name, in the calmness and in the battles. I am a river, which with its powerful tail swallows and destroys cathedrals, basilicas, jails, and mental institutions intended for the propagation of oblivion and the maintenance of a process of spiritual slavery. I am an asshole that has no fear and confabulates prayer as a mathematical practice, in an exact and earthly science, used to being pronounced by the lips of mad women and prostitutes, with an accent used to deliberate bureaucracies, in a way that our lives do not end up caught in the perverse trap and cunning tactics of a system that is an enemy of our souls. I am the wind that invades and escapes through the windows, regardless of colonial control or desire, a wind whose purpose is in pollination, in the serious dance of scattering seeds on the rough but inevitably fertile ground. Seeds that are terreiros, where Pentecostal practices of care, enjoyment or pleasure and generosity with bodies of water and clay, daughters and sons of mangroves and mountains, are taught, learned, and guarded. Grains, atoms and cells, muscles, bones and tendons. A place where heads and hips draw memories, paths, flourishes and sambas as profane as this prayer, as brave as storms, as temperated as volcanoes. This immoral theology exists to remind us that the only possible justice is the restitution of seven times everything that was stolen by the lord of lords: dreams, lives, lands, springs, faith, and above all, energy. A theology that spreads the gospel of the end of the chains and shackles of this captive world, and furiously announces the liberation of the originally travesti blackness.

Ventura Profana

Publicado originalmente na revista Dunce, em 2023.


QUASE EM EXTINÇÃO, MÃOS HONESTAS, AMOROSAS

E muito do que lhes digo é desconhecido aos que se consideram sábios e cultos; é o que tem sido pela vida, de modo tremendo, revelado aos pequeninos.

Há muitos anos…

Pelos vasos sanguíneos, nas vielas e becos dos imensuráveis brasis que existem, disseminam-se resíduos evangelísticos, propagandas de salvação; substâncias produzidas e manipuladas por uma força cristã, de escala industrial e ambição farmacêutica.

As comunidades evangélicas são incontáveis células agrupadas quase sempre pela crença na palavra e domínio do Senhor Deus, na pessoa de Jesus Cristo e no poder do Espírito Santo. Contudo, na prática elas possuem formas infinitamente distintas de manifestar e praticar a crença. Comungam da mesma fé, mas a praticam de maneiras diferentes entre si.

Caminhar pelas ruas de São Gonçalo, cidade na região metropolitana do Rio Janeiro, é se deparar com uma infinidade de letreiros, que sinalizam a presença de múltiplas e diversificadas comunidades evangélicas. Igrejas que também são conhecidas como “a casa do senhor”.

A Primeira Igreja Batista de São Gonçalo foi fundada em 1919. De lá pra cá, o pensamento protestante não só se ultra ramificou como também fincou profundas raízes no coração da América. Em São Gonçalo, é realizado o maior tapete de sal em homenagem ao corpo de Cristo na América Latina; São Gonçalo também possui o maior percentual de população evangélica do Brasil, segundo o IBGE. Numa das salas do prédio anexo à sede da Igreja Água Viva em São Gonçalo - espaço que abrigou a creche mantida pela igreja, acostumado com as atividades da escola bíblica infantil - está o ateliê de Caio Pacela, ele e sua família são membros dessa comunidade de fé. 

Veja, Jesus é o fundamento da Igreja e João - o batista, é aquele cuja voz anunciou a vinda do filho da Vida. Tanto Jesus quanto João foram assinados pela ação necropolítica do estado romano. João fora decapitado, certamente, pela ameaça que o ecoar de sua voz causava aos poderosos. Jesus, padeceu na cruz não antes de ser exposto a todo tipo de desprezo e humilhação pública. A gravidade de suas punições foi justificada por conta de seus comportamentos, julgados como  delinquentes.

Ambos são marcados por uma experiência de vida periférica e racializada, ambos experimentam ainda na infância, a fuga provocada pela perseguição conhecida como “o massacre dos inocentes”, ordenado por Herodes, rei da Judeia.

Ao longo dos quatro evangelhos que inauguram o novo testamento bíblico, os conflitos entre os interesses políticos e econômicos de fariseus e romanos e a conduta de Jesus são explicitados. Em análise não só o comportamento do filho da vida, seus ensinamentos e milagres, mas principalmente, as coisas que para ele/ela eram inegociáveis, aquilo que se tornou crucial. 

Durante sua passagem encarnada, Jesus caminhou ao lado daqueles que eram rejeitados pelos nobres, humilhados pelos sábios e empobrecidos pelo governo. Foi por amor aos feridos e adoecidos que seus gestos de coragem foram feitos. Em João 9, Jesus muda a história de um homem, banhando-lhe a cabeça com as mãos untadas em lama, lhe recomendando um banho de rio em seguida. Tal feito foi investigado e criminalizado pelos fariseus - facção formada por aqueles que se diziam guardiões da lei, da moral e dos bons costumes. 

Em Atos do Apóstolos a bíblia narra o destino da igreja de Jesus após seu encantamento, o condutor da história passa a ser, ironicamente, um dos principais perseguidores da Igreja: Saulo de Tarso, figura responsável pela composição de quase metade do novo testamento.

A missão de Saulo era uma só: destruir o legado de Jesus. No entanto, ele vivencia um episódio de conversão sobrenatural e vê sua história ser transformada. Ainda em Atos dos Apóstolos 2:13, Lucas nos conta que “cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios pelo espírito, e começaram a falar noutras línguas, conforme o espírito lhes concedia que falassem.” 

O Pentecostes, uma das celebrações dorsais da fé e pensamento pentecostal é antes de tudo, um evento profundamente marcado pela incorporação, ou seja, pelo encontro e relacionamento com a alma de Jesus. Numa ocasião em que estavam reunidos os perseguidos pelo sistema político-religioso vigente em Jerusalém.

Os povos cristãos se articulam não só nos campos físicos e terrenos, por certo que habitam e navegam, substancialmente nas esferas espirituais. Ao estabelecer relação e contato com o espírito de alguém que esteve encarnado, foi morto, mas não está morto, o espírito de Jesus.  Crucificado pela mesma Roma que abriga o Vaticano - centro do poderio católico e capital cristã do mundo - dentro de seus portões.

De Roma partem mensagens que justificam a escravização de pessoas. De Roma partem ordens que legitimam roubos, mortes e devastações. Em Roma são elaboradas noções de ética e moral. Roma mata um Jesus rebelde, Roma ressuscita um Cristo Senhor. Roma organiza uma teologia que se confunde através dos tempos com as próprias noções de colonialidade. A religião sendo utilizada como veículo para propagação de violência, adestramento e vigilância sobre todos os povos da terra.

O universo cristão é como um homem que semeou boa semente em seu campo, mas enquanto todos dormiam, veio o seu inimigo e semeou o joio no meio do trigo e se foi. Quando o trigo brotou e formou espigas, o joio também apareceu. Os trabalhadores do campo dirigiram-se a ele e disseram: 'Você não semeou boa semente em seu campo? Então, de onde veio o joio?' 'Um inimigo fez isso', respondeu ele.” Os trabalhadores lhe perguntaram: 'Quer que o tiremos?' "Ele respondeu: 'Não, porque, ao tirar o joio, vocês poderiam arrancar com ele o trigo. Deixem que cresçam juntos até a colheita. Então direi aos encarregados da colheita: Juntem primeiro o joio e amarrem-no em feixes para ser queimado; depois juntem o trigo e guardem-no no celeiro'.

As comunidades evangélicas desempenham um papel de extrema importância no contexto social das populações empobrecidas e violentadas pelo Estado. Oferecem uma série de serviços de sociabilização e redução de danos. Peças teatrais, espetáculos de dança, o livre acesso ao microfone, o canto coletivo conduzido pelos ministérios de louvor em todo e qualquer culto, as projeções pascoais de cinema com seus filmes sobre a paixão de cristo; nas cidadelas onde o circo chega de vez em nunca, onde não existem teatros e cinemas, é a igreja quem proporciona o acesso à magia da arte. Essas casas operam como redes comprometidas com o sustento básico daqueles que são convertidos e batizados, os que aceitam viver segundo os códigos e doutrinas eleitas como obrigatórias por determinado núcleo. Em todos os casos, o cristão tem como missão essencial a propagação do evangelho. Discipular, expandir, multiplicar. 

Uma teologia baseada em Jesus, que não serve ao propósito da libertação de todo e qualquer povo feito cativo neste mundo, não é uma teologia verdadeira para Jesus. Uma teologia que não está preocupada com o cuidado, com o equilíbrio pleno e relacionamento sublime entre todas as múltiplas e infinitas formas de viver, não é uma teologia alicerçada em Jesus. Uma teologia que não luta contra as injustiças produzidas pelo sistema colonial, não é uma teologia nascida no (sagrado) profano coração de Jesus. 

“Mãos na cabeça, o mão branca armou

Algemas prende a mão de um sonhador”

Uma teologia que apoia e pratica racismos, intolerâncias religiosas, transfobias, capacitismos é uma teologia de desamor, de cárcere, que serve aos interesses de Roma, ao pensamento fariseu, e contribui portanto para o fortalecimento e expansão do domínio maligno do devorador. Ela é fruto do joio semeado pelo “inimigo de nossas almas” no meio de nossos cultivos. Esta teologia não conhece a Deus, “porque Deus é amor”. E “amar é a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa.”Logo, uma comunidade cristã cuja teologia não está firmada no amor e em Jesus, não está aliançada com Deus. Ao contrário, é cúmplice de um plano de extorsão e adoecimento coletivo, motivado pela compulsão usurpadora, que dá continuidade àquilo que os fariseus já executavam no tempo em que Jesus caminhou pela terra. À medida que essa teologia de medo se espalha pelo corpo do planeta, multiplicam-se as vítimas da dor, do desespero e de uma permanente escravização espiritual. Isso porque tal movimentação suscita a desconexão com a verdadeira e misteriosa face de Deus, a face da Vida. 

Talvez essa seja uma das maiores feridas provocadas pela ação colonial: a invenção de um deus-humano supremacista e punitivista mais preocupado em degolar cabeças do que em habitá-las com/por amor. Um ser “divino” que não só está de acordo com o esgotamento e envenenamento dos rios e fontes de água, com a perfuração das montanhas e a poluição da atmosfera, mas que inspira tais feitos. Um deus miliciano, que engorda sua conta bancária com o valor extraído através do abuso e da condenação, que resulta na aniquilação da vida dos que são, por força e de modo hediondo, feitos escravos seus. 

“As mãos que se humilham aos céus

Serão as que erguerão troféu”

A vida não é cativeira da humanidade; estai, pois, firmes na liberdade com que Jesus, filho da vida, deusa encarnado, nos libertou e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. Jesus nos dá livre acesso à vida divina e nos transporta ao mundo espiritual, à medida que seu espírito adentra nossas carcaças e dentro delas faz morada. Por isso, onde há vida, Deus está. Deus-vida está em todas as cabeças. Por isso, todo ser que respira, cria. Isso porque a essência maior e fundamental de Deus é a criação para transformação e a transformação para criação. 

Deus precisa do nosso cuidado, tanto quanto nós precisamos do cuidado de Deus. Uma casa de oração deve ser uma casa de cuidado. Espaços de arte também deveriam ser pentecostais. Qual a diferença entre uma igreja e um museu?


O pentecostes foi um evento de cuidado em meio à fuga. A teologia de Jesus nos ensina a cuidar melhor uns dos outros. Igrejas pentecostais devem ser lugares onde pessoas podem ser cuidadas, curadas, amadas, alimentadas, não só, mas sobretudo espiritualmente. Almas adoecem. E mãos possuem poder de cura. Deus em nossas cabeças precisa ser alimentado. Lá em casa, minha avó comia com as mãos. 

Em Amálgama, quase como um paparazzi, Pacela nos revela uma íntima coreografia, de ordem sobrenatural. Uma porção daquilo que se derrama no Santo dos Santos, o lugar mais sagrado de um templo, onde o fundamento está assentado, por onde o espírito de Deus flui, habita e se manifesta. Encantaria. Cabeças sedentas por cura, descanso, direção, avivamento. Mãos que intercedem e são responsáveis pela condução (na contenção) dos mistérios propiciados pela presença e participação espiritual. 

Em Mateus 11, Jesus convoca os que estão cansados e sobrecarregados, os oferecendo alívio e descanso para a alma. As comunidades cristãs estão cada vez mais lotadas, precisamente porque a quantidade de vidas assoladas, ameaçadas e destruídas pela colonialidade permanece em expansão. É o desejo pela transformação que conduz pessoas à comunidades de fé. Em Marcos 5, a bíblia nos apresenta a história de uma mulher que acreditava que seria curada de seus males, ao dar apenas um toque em Jesus. Ela tocou e foi curada. Jesus disse, que a razão pela qual a vida dela foi transformada foi a fé. 

Num toque, há fé. 


“Agora, a missão tá nas suas mãos…”****


Também por meio da fé, muitas presenças invisíveis e insondáveis aparecem concentradas dentro e por entre as pinceladas de Caio. Suas pinturas/visões têm nos levado a mergulhar numa imensidão de evangelicalistas complexidades. Por isso, na árdua tarefa de discernimento daquilo que é joio ou trigo, me parece indispensável visitar seu trabalho. Ganhar um tempo se perguntando: “minhas mãos têm sido utilizadas para drenar a energia vital ou para oferecer caminho de cura e libertação para cabeças?”

Em qual teologia meu ori ~ coração tem sido e vem sendo moldado?

(Texto crítico sobre a pintura Amálgama de Caio Pacela. Publicado originalmente na Revista ZUM #32)


A TEOLOGIA DA TRANSMUTAÇÃO

"nossos corpos nunca deixaram a cruz. eu sinto os cravos em nossas mãos. a humilhação diante dos povos. a culpa sobre os ombros. e não falta quem queira chicotear. todos os dias, escolhem Barrabás. mãe, não os perdoem. eles sabem o que fazem."

Em nome do deus de Israel, a nossa tenda foi destruída; todas as cordas das nossas tendas foram arrebentadas. Testemunhamos a cada instante, a aceleração e intensificação dos processos de destruição massiva sobre abundantes mananciais e terreiros de vida, em todo sul global; golpes, traumatismos, mataduras e coreografias cânones de escravização, elaboradas e guarnecidas pela branquitude heteronormativa patriarcal, diabolicamente supremacista - estruturada e aparelhada religiosamente no plano-tempo colonial, tecido e engordado ao longo dos últimos dois milênios. Contudo, domiciliamos-nos em todos os anos que são também séculos, somas de meses, pedaços de eras e trechos de gerações. Um tempo que, segundo Leda Maria Martins no livro Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela de 2021 é "não partido e não comensurado pelo modelo ocidental da evolução linear e progressiva. Um tempo que não elide a cronologia, mas que a subverte. Um tempo curvo, reversível, transverso, longevo e simultaneamente inaugural, uma sophya e uma cronosofia em espirais." Sustentadas por tendões entrelaçados em todos os tempos, somos a parede do olho. O vento que invade e escapa pelos portais das janelas, independente do controle colonial. Ventania não tem pátria. Pátrias são vales de ossos secos. 

Abordamos a vida, bordando-a em nós, não nos falta fé. E pela fé, em ritmo de milagre, parimos e moldamos um evangelho, ao qual somos crentes e confirmadas: o evangelho do fim. Fim da "perpétua" condenação - imaginada e decalcada pelo cistema capitalista devorador, de modo brutal, demoníaca e violentamente impregnado - em nossas terras, e não só em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração - com tinta espiritual. O que o evangelho do fim, dogmaticamente propõe, sendo a Teologia da Transmutação uma evidência dessa movimentação, é a transfiguração daquilo que nos é entregue como sentença irrevogável. 

Se nos dão hediondo esquecimento, morte, dor e desprezo, com intensidade equivalente, faremos brotar videiras. Germiná-lo-emos toda a terra, replantando florestas ombrófilas densas. Destarte, o trabalho missionário - enquanto desafio poético, financeiro e espiritual - consiste em multiplicar congregações onde a liberdade é praticada, e os laços étnicos e ancestrais são revigorados¹, onde se possa amar e estimular a vida, que está no cu, cultivando-a poderosa, para engolir e destruir as estruturas das basílicas, tronos e tribunais por onde o racismo, a xenofobia, o capacitismo, a misoginia e a transfobia assentam-se. 

Partindo do cu, tomando-o como alicerce do Tabernáculo. Quem desculoniza transcende a cruz. Isso é, a vida está no cu, reconciliando-nos com incontáveis mundos, não nos acusando pecadoras; pondo em nós a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadoras da parte do cu, como se a vida por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte do cu, que vos reconcilieis com a vida. 

Descemos e subimos as ladeiras, entoando ladainhas e spirituals de vida e vitória, em esquiva, para que não tropecemos nos crânios, que escapolem dos calvários, que todas as ruas urbanas são. Somos herdeiras das impossibilidades, no entanto nutrimos a responsabilidade e compromisso transcestral de gestar, gerar e gerir possibilidades infinitas: que são rachaduras, brechas, rasuras, fugas, esconderijos, oásis e fortalezas, dissemelhantes às noções lógicas, racionais e temporais humanas; de viver, pensar, gozar, falar, habitar e existir. Elaborando antídotos capazes de frear e combater as frentes alvejantes de envenenamento e adestramento, promovidas pelo senhor - circunscrito na figura de fariseus, coronéis, latifundiários, mineradores, garimpeiros, sojeiros, doleiros e milicianos - e vosso ímpeto mentiroso, saqueador, destrutivo e assassino. Nesta diligência são designadas algumas para apóstolas, outras para profetas, outras para evangelistas, e outras para sacerdotisas e mestras, com o fim de preparar as profanas para a obra do ministério, para que o corpo seja edificado, até que todas alcancemos a multiplicidade da fé e do conhecimento do cu, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude. 

O initerrupto exercício de matar o senhor é o passo vital para um rompimento com o modo perverso de praticar teologia, desvinculando o legado de Jesus da imagem e semelhança do homem branco cisgênero, e livrando-a do status senhoril, ao qual foi cristalizada e por conseguinte aprisionada; mediante o plano litúrgico e onto-epistemológico de domínio defendido e cruzado pela ordem católica apostólica romana, cuja tradicional historiografia da arte européia desempenhou papel dorsal, à medida que enganos e ficções foram dramaturgicamente musicadas e encarnadas através de pinturas, esculturas e instalações arquitetônicas que estabelecerem-se no mundo como verdades universais.   

Ao mesmo instante, reiterar, honrar e reconhecer as experiências de transmutação de Jesus (MT 17:1-9, MC 9:2-8 e LC 9:28-36), vinculando-as às causas e circunstâncias de sua condenação jurídica, cortejo vexatório e brutal assassinato aos trinta e três anos de vida, com uma lupa direcionada às suas posturas e pensamentos críticos divergentes ao modelo de Estado vigente em Jerusalém, durante sua vida encarnada, nos permite traçar um paralelo com os dados contidos no dossiê de Assassinatos e Violências Contra Travestis E Transexuais Brasileiras em 2021, desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA). A ANTRA é uma rede brasileira que articula 127 instituições no desenvolvimento de ações para promoção da cidadania da população de Travestis e Transexuais. Os dossiês são organizados há cerca de cinco anos e segundo dados do último levantamento a expectativa média da população trans brasileira é de trinta e cinco anos. Além de denunciar a violência, o relatório explicita a necessidade de políticas públicas focadas na redução de homicídios contra vidas trans, traçando um perfil sobre quem são as pessoas que estão sendo assassinadas. 

É necessário ter coragem para romper as barreiras de uma sociedade que não foi ensinada a amar-nos e que não se importa, nem deseja aprender. Há um desinteresse heteronormativo em aprender outros jeitos de amar, outros formas de ser, um desinteresse em aprender. Todavia, um grande interesse inimigo concentra-se na erradicação de toda e qualquer possibilidade de encontro abundante entre desobedientes - neste caso, desobedecer é se armar e prover pensamentos e imaginações que brotem, acolham, produzam e se alimentem da contradição. Segundo Castiel Vitorino Brasileiro numa conversa com Diane Lima para a C&AAL, em 2019: “Somos contrárias e contraditórias quando vivemos aquilo que é impossível ao colonizador.” Pode-se dizer que a profecia é alimentada a partir das contradições da história e, por isso, as profetas se fazem atentas àquilo que as cerca com o objetivo de comunicar a palavra de existência à tudo que existe, tendo como principal preocupação a precariedade de vida imposta ao povo feito pobre e miserável. Os inimigos de Jesus ainda permanecem assentados sobre tronos de glória, poder e majestade, enquanto as congregações desobedientes são despedaçadas ao fio da espada. Realidade que nos conduz aos eventos que sucederam a execução de Yeshua e a brutal perseguição à qual foram submetidas suas discípulas e companheiras de jornada. Em Atos dos Apóstolos 2:13, a bíblia revela-nos que “cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todas concordemente no mesmo lugar e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentadas. E foram vistas por elas línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um delas. E todas foram cheias pelo espírito, e começaram a falar noutras línguas, conforme o espírito lhes concedia que falassem.” 

Portanto,  o episódio em que se atribui o dia do nascimento da igreja cristã, ou seja, uma das celebrações dorsais da fé e pensamento pentecostal é na verdade um evento profundamente marcado pela incorporação, ou seja, pelo encontro e relacionamento com as santas almas, neste caso, a alma de Jesus, numa ocasião em que estavam reunidas as perseguidas pelo poder estatal que governava Jerusalém, ou seja, as piores de entre as nações: travestis, feiticeiras, trabalhadoras sexuais, e muitas outras inimagináveis "abominações".

A prática coletiva e o ajuntamento desobediente entre as companheiras de Jesus, as possibilitou esquecer as línguas e linguagens coloniais enquanto se lembravam das línguas maternas de suas mães e avós. Ainda em Atos está registrada a incompreensão do colonizador, ao atônito questionar-se: “Que quer isto dizer?”, apontando-as como loucas ou embriagadas. Em Isaías 53, o profeta discorre sobre a natureza carnal de Jesus, expondo a maneira como foi percebida pela sociedade quando nos diz que: “não tinha beleza nem formosura e, olhando o mundo para ela, não havia boa aparência, para que a fora desejada. Era desprezada, e a mais rejeitada entre os homens; trava de dores, e experimentada nos trabalhos; e, como uma de quem os homens escondiam o rosto, era desprezada e dela não fizeram caso algum”. 

A grande comissão (MT 28:18-20) é onde está fundamentada a precisão evangelística de mover-se pelo mundo, perambular, ir e  girar por todos os cantos e caminhos, amplificando e fortalecendo práticas educacionais que possibilitem libertação ao maior número de pessoas em estado de cativeiro. Para que esta tarefa seja realizada, é imprescindível que estejamos afinadas com o fluxo intenso de ferramentas e novas tecnologias em desenvolvimento. Sempre foi preciso ousadia e confiança para navegar pelas infinitas possibilidades de uso e relacionamento com tais adventos. Além disso, é importante cuidar e aprimorar as habilidades metamórficas, compilando muita malícia para decifrar, decodificar e compartilhar as informações e mensagens, sem permitir que o inimigo apreenda e assimile os métodos de liberação esculpidos na prática evangelística. Nesse labirinto, todas as tecnologias nos são lícitas, mas é preciso calma e sabedoria em seus manejos e conduções. A "palavra do senhor", foi a obra escolhida na feitura da primeira impressão da história, mediante à invenção da prensa com tipos móveis de Johannes Gutenberg, no ano de 1455, desde então tem sido difundida exaustivamente pelo mundo e utilizada como base teórica, junto à Dum diversas - bula papal emitida em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V e direcionada ao rei Afonso V de Portugal - como instrumento de legitimação dos roubos de terras e bens, dos genocídios e para a consignação da escravidão perpétua de todos os povos e territórios não cristianizados. Através de uma leitura bíblica estratégica é possível rastrear os passos, intenções e articulações senhoris, mapeando coreografias sanguinárias e desvendando códigos e idiomas, que nos permitam dialogar com aquelas que ainda estão debaixo do jugo espiritual cristão, drenadas pelas ações pesticidas e agrotóxicas do senhor, a partir de um repertório compreendido por elas, algo que se faz imediato e inadiável, sobretudo considerando a expansão do fundamentalismo religioso e extremismo neopentecostal no Brasil. 

Como estabelecer tecnologicamente alianças insondáveis, entre nós, traçando caminhos que confundam a sabedoria inimiga, e nos proporcionem desfrutar de nossas próprias abundâncias e genuína pluralidade? Cremos numa teia espiritual, que flui incalculavelmente nas terras feridas desse planeta e nos concatena, ainda mesmo que estejamos espalhadas geograficamente. Essa liga passeia pelos âmagos, provendo as condições físicas, mentais e emocionais necessárias para irmos tão fundo no oceano das coisas. A malandragem teológica é um conjunto de manobras de oxigenação, que permitem com que respirações profundas sejam exequíveis distantes da ação maligna colonial. É através dela que conseguimos lembrar, mesmo quando, desde o nascer, somos feitas cativas nas catedrais do esquecimento. Malandragem teológica é Harriet Tubman libertando cerca de trezentas pessoas escravizadas, ao longo de dezenove missões de resgate, liderando uma expedição armada na guerra civil e libertando outras setecentas vidas. Malandragem teológica é Peter Williams Jr co-fundando o "Freedom Journal", ao estender seu ministério para além dos púlpitos e palestrar uma oração sobre a Abolição do Comércio de Escravos em 1 de Janeiro de 1808. Malandragem Teológica é Sojourner Truth indo ao tribunal resgatar seu filho e vencendo um caso contra um homem branco em 1828, é Frederick Douglas escrevendo "A igreja e o preconceito" em 1841, é o toque dos atabaques nas pequenas congregações da assembleia de deus espalhadas pelos interiores e periferias do Brasil. É a memória ancestral de caboclas, boiadeiros, pretos e pretas velhas, erês, marujos, pombagiras e tranca ruas, é exu infinitamente próspero que permanece amalgamado no dna de povos pretos e originários, mesmo debaixo do jugo infeliz do deus de abraão, isaque e jacó. Nossa profanação é viver sete vezes mais; é esquecer a branquitude e a cisgeneridade, ainda que perseguidas e desautorizadas. 

As movimentações de esquiva, drible e desvio, guarnecidas pela malandragem teológica, numa esfera cristã ganham a alcunha de milagre, contudo, são capoeira e encantaria. 

Sendo o Cristianismo um dos motores fundamentais para o funcionamento cabal da máquina colonial capitalista, a malandragem teológica enquanto artimanha tecnológica, procedente do evangelho do fim, atua como uma práxis evangelística de cura, a libertação profética através de uma desorientação pentecostal. Segundo James H. Cone, em A Black Theology of Liberation publicado em 1970, “a função da teologia é analisar o significado da libertação para as pessoas oprimidas, assim, podem saber que sua luta por justiça política, social, econômica - e incluímos também a justiça ambiental - está de acordo com o evangelho de Jesus. Qualquer mensagem não relacionada à libertação de pessoas dissidentes em uma sociedade não é a mensagem de Jesus. Qualquer teologia indiferente ao tema da libertação não é teologia cristã.” 

 Conduzir a teologia cristã pelas veredas misteriosas da transmutação, é fazer resplandecer sobre Jesus um semblante excepcional, desconforme e incompreensível à branquitude.  Ao passo que as lembranças de sua errática conduta são reacesas. A transmutação é a inevitabilidade que torna dispensável o suposto milagre da ressurreição. Jesus não ressuscita pois, em verdade, em verdade se transmuta. "A decomposição é uma benção" nos diz Jota Mombaça, em THE SINKING SHIP/PROSPERITY, 2022. Roma não conseguiu, nem jamais conseguirá matar J.esú.s -, matar a nós, matar J'esuis em nós, matar a verdade, o caminho e a vida em nós, mesmo apesar de todo sangue vertido. 

Porque bem sabemos os pensamentos que temos a nosso respeito; pensamentos de paz e não de mal, para nos dar o fim que esperamos, desejos que jamais deixaram de ser tecidos e não se traduzem para o português, inglês ou espanhol. Copiosas histórias para nossa congregação, da qual somos cabeça, corpo e cauda, infinitamente maleáveis. 

Grande é este mistério, digo-o, porém, que arriscamos tudo pela liberdade terrena.

Tal evangelho não consiste numa campanha de morte a Deus, ou numa hermenêutica ateista, mas sim num prazeroso exercício de transição. Mata-se o macho para que Deize possa renascer em nossos corações. Deize são as Yabás falando ao pé de nossos ouvidos. Juntas em unção, fizemos da cruz: encruzilhada. Nos levantamos do vale de ossos secos. Transformamos pranto em festa, nossos cus em catedrais. Conhecemos os mistérios por com eles andar. Deize é Pacha Mama, princípio, meio e fim.

(Publicado originalmente na revista GenderIt, em 2022)